Como a reunião dentro da qual esse curso é oferecido é
dedicada ao "Século da Genética", cabe aqui a inserção
desse assunto no contexto daquilo que o século XX viu acontecer
na Ciência da Hereditariedade. Retrocedamos então ao ano de
1900 (que na verdade é o último ano do século XIX),
quando as leis de Mendel
foram redescobertas. A tradução do trabalho de 1866 de Mendel
pode ser vista aqui.
Três botânicos (Karl Correns da Alemanha, Hugo De Vries da
Holanda e Erich von Tschermak-Seysenegg da Áustria), a partir de
experimentos envolvendo cruzamentos com plantas, chegaram independentemente
às mesmas conclusões que o monge austríaco havia
chegado em 1866, ou seja, depois de 34 anos. O ano de 1900 costuma ser
considerado como o marco da origem daquilo que se convencionou chamar de
"Genética moderna". O intervalo de tempo entre a publicação
das proposições de Mendel e de sua aceitação
pela comunidade científica atesta que as idéias do pesquisador
austríaco eram por demais avançadas para seu tempo. A grande
novidade introduzida por Mendel nas suas interpretações dos
resultados dos cruzamentos referem-se ao emprego de um raciocínio
matemático-probabilístico em Biologia, que não era
de costume. A associação do raciocínio matemático
com fenômenos biológicos acompanhou a Genética desde
então. Esses pesquisadores concluíram que os caracteres
que eram herdados de uma geração para outra o faziam por
intermédio de fatores particulados que ocorriam aos pares. Embora
as leis da hereditariedade sejam hoje consagradas, especialmente a primeira
lei de Mendel, e são ministradas em todos os programas de ensino
de Biologia ou Ciências, as conclusões desses geneticistas
não foram aceitas imediata e completamente. No começo do
século XX os conceitos de "mistura de sangue" para a explicação
de fenômenos hereditários estavam amplamente arraigados. Para
entendermos como esses conceitos têm sua força, basta atentarmos
para alguns termos que são empregados até hoje, tais como
"puro-sangue", "sangue azul", etc. Havia, no começo do século
XX outras maneiras de se interpretar o fenômeno da hereditariedade,
inclusive com a proposição de outras leis. O pesquisador
britânico,
Francis
Galton, a partir de estudo com pares pais-filhos, propôs a "lei
da regressão para a mediocridade". Vamos então aqui
esquematizar a primeira lei de Mendel e a lei de Galton:

Lei da regressão para a mediocridade de Galton:

No gráfico acima esá representada a relação entre pais e filhos de uma variável métrica (por exemplo, altura). A linha azul representa o esperado se os filhos tivessem exatamente o valor da média dos pais. Note que pais que apresentam valores maiores da característica têm descendência com um valor médio da característica menor que a média observada daquela medida entre os pais. Por outro lado, os pais que tem o valor menor da característica têm os filhos com valores maiores que aquele da mádia entre os pais. Por isso a lei foi chamada de "regressão para a média". Como curiosidade, o método estatístico de ajuste de linhas pelo método dos mínimos quadrados é até hoje chamado de "regressão linear" por um dos seguidores de Galton, Pearson. O índice r que mostra quão bem os pontos experimentais se ajustam a uma reta é o coeficiente de regressão linear de Pearson.
Galtonistas X Mendelistas
Os resultados e suas interpretações
aparentemente antagônicas originaram uma disputa de natureza científica
que durou as primeiras décadas do século XX. Essa disputa
teve importância na discussão a respeito do processo de evolução
biológica, pois Charles
Darwin, um dos criadores da teoria da evolução por seleção
natural junto com Alfred
Russell Wallace, também inglês, acreditava que a
evolução por seleção natural era um processo
que ocorria sobre a variação genética de natureza
contínua, sendo portanto um processo gradual. Hugo
De Vries foi um dos proponentes da teoria alternativa de "evolução
por saltos", através de mutações de grande efeito,
onde o processo não seria gradual. Havia ainda outros fatores envolvidos
na disputa. De Vries, Wilhelm Johannsen e Wiliam
Bateson são conhecidos como os "mendelistas de primeira hora",
envolvidos com a divulgação da herança particulada.
Galton era inglês e primo de Charles Darwin, fundou a escola biométrica
com cientistas do porte de Karl Pearson, que desenvolveu métodos
estatísticos usados até hoje, tornando a Inglaterra um reduto
daqueles que estudavam herança de caracteres métricos. Os
geneticistas mais ativos nos experimentos que dissecavam as leis de Mendel
eram liderados principalmente pelo americano Thomas
Hunt Morgan (originariamente embriologista). Essa diferença
em termos da localização dos centros de pesquisa adicionava
um sabor de regionalismo na disputa. Além do aspecto de regionalismo,
Francis Galton esteve ativamente envolvido na prática da eugenia
(um termo por ele cunhado, literalmente "genes bons"), que propunha o melhoramento
genético da espécie humana. A eugenia chegou a se tornar
uma prática popular nas primeiras décadas do século,
inclusive com a publicação especializada, "Journal of Eugenics",
fundada por Galton. Os exageros das práticas eugênicas (por
exemplo as práticas adotadas pelos nazistas na Alemanha e as esterilizações
em massa nos Estados Unidos) ocasionaram o abandono desse tipo de prática,
que é mal vista até os dias de hoje. Uma breve história
dos movimentos eugenistas na América do Norte e na Europa pode ser
encontrada aqui.
Mas a disputa não era
essencialmente regional ou política, envolvia um grande embate no
campo científico. A seleção natural ou artificial
em caracteres de natureza contínua foi posta à prova através
de experimentos por diversas vezes. O grande geneticista dinamarquês,
Wilhelm Johannsen, que cunhou os termos "gene", "genótipo" e "fenótipo"
verificou experimentalmente a falta de resposta à seleção
através de tentativas de seleção em plantas previamente
endocruzadas sem ter se apercebido que estas não apresentam obviamente
variabilidade genética. O termo "fenótipo" foi cunhado por
Johannsen devido ao reconhecimento da importância do ambiente nas
características que apresentam variação contínua.
Morgan chegou a afirmar em 1932 que "A implicação da teoria
de seleção natural de que selecionando-se os indivíduos
mais extremos da população, a próxima geração
mover-se-á na direção selecionada, é
agora reconhecida como errada". Esse tipo de afirmação que
contrariava a observação talvez milenar da prática
do melhoramento genético de plantas e animais ilustra bem o abismo
conceitual que existia entre aquilo que atualmente se chama de genética
quantitativa e a genética mendeliana.
A síntese
Em 1866, no mesmo trabalho em que propôs suas leis, Mendel já havia percebido que, nos resultados do cruzamento entre duas espécies de Phaseolus, poderia haver a contribuição de dois fatores diferentes para a mesma característica, no caso a cor das pétalas e das sementes. O próprio Bateson chegou a reconhecer a existência de muitos genes para uma mesma característica como sendo uma das possíveis resoluções do conflito a respeito da natureza da variação contínua. Entretanto, a primeira demonstração experimental de que os caracteres mendelianos poderiam estar envolvidos na variação contínua foi feita pelo botânico sueco Nilsson-Ehle com cruzamentos envolvendo trigo, entre 1908 e 1911. Outros pesquisadores chegaram independentemente à mesma conclusão em 1910, através do estudo de variação contínua em milho (Edward East, um químico americano) e através do estudo da cor da pele humana (Charles Davenport, um eugenista americano). Em 1908, dois pesquisadores chegaram, independentemente, à conclusão de que não haveria necessidade de que uma população mantivesse as proporções 3:1 no caso de características mendelianas, como chegou a ser proposto na época. Godfrey Harold Hardy, o mais importante matemático inglês deste século publicou um artigo demonstrando que as freqüências dos genótipos não se alterariam ao longo das gerações pelo simples fato de que apresentavam herança mendeliana. Wilhelm Weinberg (1862-1937), um médico alemão preocupado com a herança do potencial de gerar filhos gêmeos em humanos, também chegou às mesmas conclusões. Os modelos desses dois pesquisadores resultaram naquilo que se conhece hoje como equilíbrio de Hardy-Weinberg. Em 1918, o geneticista inglês Ronald Alymer Fisher, que prestava assessoria estatística (tendo inventado muitos procedimentos fundamentais para essa área da matemática, tal como o teste exato de Fisher e a análise de variância) para uma estação experimental de agricultura, publica um trabalho que é considerado como a formalização da síntese entre o mendelismo e a biometria. Fisher, junto com o geneticista americano Sewall Wrigth e o inglês John Burdon Sanderson Haldane construíram os pilares da Genética de populações. Essa área da Ciência, nascida no século XX, além de fornecer subsídios sólidos para toda a genética do melhoramento animal ou vegetal, também forma a base da teoria sintética da evolução.
Os locos de caracteres quantitativos
Embora seja um campo de pesquisa muito ativo na atualidade, a tentativa de identificar locos com efeito sobre caracteres quantitativos remonta quase ao princípio da Genética clássica. O que existe hoje é devido à enorme disponibilidade de marcadores moleculares, associado a um grande conhecimento do papel de locos individuais em muitos fenótipos. Os locos de caracteres quantitativos, que podem ser localizados graças à ligação genética com os marcadores têm a sigla QTL, do inglês Quantitative Trait Loci. Esta metodologia pode ser considerada como o coroamento da síntese entre a genética mendeliana e a genética quantitativa.